domingo, 20 de dezembro de 2009

O primeiro dia

Sonho alto, estou numa montanha que mais parece um planalto.
Sonho algo do qual não me vou lembrar quando voltar à cama de manhã.
Eis que tudo é plano até onde o meu olhar alcança e tudo nesta escola cheira a desespero.
Entro no primeiro dia de aulas (é sempre o primeiro). Não me deixam entrar porque algo apitou à entrada. O meu Mp3 é demasiado metálico ou simplesmente é proibido dentro da sala de aula.
Esta escola é grande e a minha expectativa é incerteza. Não encontro horários afixados, não sei porque soa assim que entro o toque de entrada. Sabia que tinha tempo para vir procurar informações e assim que tento falar com alguém, a única pessoa que conheço é aquele que gozou comigo na entrada e oferece-me um lugar ao lado dele na carteira dele bem atrás no canto da sala ao ar livre.
Não sei se é a minha aula, mas pelo menos a esta já não tenho falta, posso sempre dizer que me enganei. Escondo a cabeça entre os braços flectidos sobre o tampo da mesa. Sinto que estou num cubículo como quando costumo guardar os brincos dentro de uma caixa de tampa de vidro. Olho para o tampo aberto e noto que não tem vidro, só a moldura.
A professora dá a volta à turma com os olhos para perceber quem é novo e quem já é do outro ano e olha para uma silhueta curvada por trás de umas quantas cabeças, a minha. O Rapaz Audaz tenta distrair a sua atenção mas os nossos olhos cruzam-se. Tento em vão meter a cabeça debaixo da mesa mas estou demasiado apertada para caber, quanto mais para acrobacias. Salva pela Directora. Como é que eu sei que é Directora? Acho que se vestem todas de igual....
Esta vem mostrar à turma a nova inovação da escola, um projector magalhães....
"Óptimo..." :-P Lá vêm os trabalho em “.pps” para entregar no fim de cada semestre.
Muito entusiasmada olha para a turma e pede um voluntário e eu ofereço-me (eu ofereço-me???), pois enfim, a saga agora é saber como de liga aquilo.

O dia põe-se bastante cinzento lá fora e para compôr a paisagem transformei agora todos os alunos em ingleses, assim que me viro para ver o que está a ser projectado dentro da sala.
A aula acaba rápido, não me lembro de como saí da sala, desse plano para a rua é imediata a transição.
Ao meu lado vislumbro três raparigas que juntas agarram-se umas às outras e levam com um balde de água do primeiro andar.
É como se o exterior fosse um corredor enorme, entre dois prédios compridíssimos de um andar, virados para um pátio. Nesse pátio ainda estavam construídos uns bunkers-apartamentosno meio.
Estas raparigas mudavam-se para a próxima varanda e levavam com o próximo balde das varandas ligadas.
Chegou o que parece ser o último balde de duas delas. Desgastadas, parecendo cambalear pelo corredor a fora, tremendo de frio, seguindo agarradas umas á outra. A terceira que estava de costas continuou porém. Tinha de receber ainda mais.

É esguia e bem formada. Cabelo negro e branco pintado e irreverente, olhos pintados, expressão de aborrecimento. Quando se curva retira um charuto da bolsa interior do colete para apenas segurar nos dedos como se fosse um político celebrando as tragédias dos outros, ou como se as suas palmas viradas aos céus pudessem vislumbrar a justiça que faria com elas aos transgressores que se divertiam, como se este fosse mais um dia de guerra e que férias e aulas não significassem nada. Percebo, ao olhar pelo corredor uma segunda vez , que este é mais comprido do que os meus olhos alcançam e que mais parece uma prisão e que todas as divisões são comprimidas prisões sem barras. Uma prisão de adultas-crianças que atrofiam num lugar ao mesmo tempo espaçoso e fechado.
Ela olha para mim durante o relance de olhar para cima, pausa, fecha os olhos.
Leva com outro balde de algo que agora já não parece água mas que é turvo e substancial.

Pergunto ao Rapaz Audaz porque é que ela está a receber de mãos abertas o que parece castigo? O rapaz responde que aqui não se fazem perguntas sobre esse tipo de coisas estranhas. Se é castigo é merecido. Se é de mão abertas é porque é reconhecido como dever.

Outro rapaz, contente com uma ideia que teve ou que lhe foi dada, entra dentro da casa atrás da moça, no meio do pátio e sai de lá com um isqueiro, acende o charuto.
Olham-se os dois, ela afasta-se imediatamente como se tivesse planeado aquilo tudo.
O charuto arde demasiado rápido nos seus dedos e em espaço de segundos ela atira as cinzas para cima dele e o seu braço começa a ser consumido e a deitar fumo negro.

Ela desaparece, ele não arde, consome-se, fica negro e paralisa. O Rapaz Audaz não se ouve. A Directora parece que está a preparar-se para a deixa final, não se vê.

Eu grito para que ele se deite e role no chão mas ele cai sobre os restos do balde que em nada parecem afectar o efeito das cinzas do charuto. Parece que mesmo que lhe deitássemos água ela não seguiria penetrar e apagar este efeito consumidor. Os fluidos dele começam a vir à tona da pele e a misturar-se com as cinzas. Ao se misturarem adquirem um efeito muito corrosivo e vê-se uma linha na barriga dele que começa a corroer uma entrada. Nesta altura nem consigo mexer-me, digo para que não se mexa mas é tarde demais porque não ouve de tanta comichão, abre-se em dois e já nem sangue se nota, apenas os órgãos atrofiados e negros ao passo que ele deixa de respirar e tudo o que tinha dentro vê-se de fora.

Eu começo a chorar violentamente.

Um homem muito alto vem ao encontro do acontecimento. A directora, as contínuas e mais gente porém ficam a uma distância razoável. Perguntam-se que ele tinha desmaiado e eu respondi que ele estava morto em grande choro e descontrolo.

Consolam-me.

O senhor manda colocar uma cobertura sobre o cadáver e instrui para que não se toque o toque de saída até que o morto fosse coberto e a área delimitada à curiosidade dos alunos.

Algures atrás ouvem-se vozes dizer que nunca o Ritual tinha descontrolado nisto…

Ouvem-se berros, gritinhos, espanto e a chuva que acabou por não vir a trovejar longe dali…

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